Papa mulher? Como surgiu a lenda da 'Papisa Joana'

  • 19/04/2025
(Foto: Reprodução)
Na Europa medieval, começou a circular uma história sobre uma mulher muito culta que teria vivido no século 9 e teria sido eleita Papa entre 855 e 857. A papisa Juana em uma ilustração em miniatura do século 15 Getty Images via BBC Na Europa medieval, começou a circular uma história sobre uma mulher muito educada que viveu no século 9. Ela se vestia de homem para receber educação universitária e viajou para Roma, onde ascendeu na hierarquia da Igreja e mais tarde foi eleita Papa entre 855 e 857. Seu papado teria tido um fim dramático quando foi descoberto que ela era uma mulher — inclusive dando à luz na rua durante uma procissão. Diferentes versões dizem que ela morreu por assassinato ou de causas naturais. A história da Papisa Joana — Ionannes Anglicus, ou João, o Inglês, como ela é conhecida nos textos medievais — tem sido questionada ao longo dos séculos e rejeitada pela maioria dos estudiosos. Mas, mesmo assim, continua sendo contada. Sua história foi adotada como forma de advertência da Igreja Católica para manter as mulheres em seus papéis tradicionais. Após a Reforma, a história foi usada pelos protestantes para minar a legitimidade do catolicismo e o poder de Roma. Ela também mostra a linha tênue entre verdade e ficção nas crônicas históricas. Sua história continua viva hoje em romances, teatro e filmes. Mas como surgiu a lenda da Papisa Joana, por que ela persiste e como ela foi vista pela Igreja? LEIA TAMBÉM As mulheres ordenadas padres da Igreja Católica que enfrentam o Vaticano e ameaça de excomunhão Papa nomeia freira italiana como primeira mulher a liderar importante escritório do Vaticano O que é o moharebeh, crime contra Deus pelo qual o Irã executa manifestantes Cerca 20 mil pessoas acompanham a encenação da Paixão de Cristo As origens da lenda Acredita-se que ela tenha vivido no século 9, mas foi somente em meados do século 13 que a lenda foi escrita pela primeira vez — embora seja bem possível que ela já circulasse oralmente antes disso. Há três versões antigas de escritores — Jean de Mailly, Stephen de Bourbon e Martin da Polônia — que são muito semelhantes, cada uma adicionando elementos específicos. Segundo eles, Joana nasceu na cidade alemã de Mainz, filha de pais ingleses, embora nada se saiba sobre eles. Quando ela ainda era relativamente jovem, ela fugiu de casa com seu amante e se disfarçou de homem. Ambos vão para Atenas com o objetivo de obter uma educação universitária, onde ela aparentemente se destaca naquele ambiente e é considerada uma acadêmica importante. Ela então viaja para Roma ainda vestida como homem, chama a si mesma de John (João) e se torna professora, ensinando gramática, lógica e retórica para nobres e discípulos importantes na sociedade. Ela ganhou reputação não apenas por seu brilhantismo acadêmico, mas também por sua integridade moral, a ponto de ascender na hierarquia da Igreja. "A vestimenta clerical naquele período é mais parecida com uma túnica e seria muito fácil esconder o corpo de uma mulher [por baixo dela]", disse Katherine Lewis, professora honorária de história medieval na Universidade de Lincoln, Inglaterra, ao programa In Our Time da BBC. O traje dos clérigos medievais, com uma túnica e a cabeça coberta, tornaria mais fácil esconder o sexo de uma pessoa Getty Images via BBC "É importante que ela se vestisse como um homem, caso contrário ela não teria conseguido obter uma educação acadêmica ou assumir uma função clerical, porque as mulheres eram proibidas de receber ordens sacerdotais", explicou ele. Segundo a história contada pelos autores, ela se tornou cardeal e foi eleita Papa por unanimidade, supostamente como sucessora de Leão IV, que morreu em 855. Ela teria servido como papa por dois anos, sete meses e quatro dias. Aparentemente, ela teria desempenhado bem esse papel, diz Katherine Lewis, com uma exceção: ela não teria seguido o estilo de vida celibatário exigido do Sumo Pontífice. Ela teria continuado um relacionamento com seu amante e, consequentemente, engravidado e dado à luz de maneira pública e dramática durante uma procissão, revelando sua verdadeira identidade. A iconografia medieval retrata o momento em que Joana dá à luz em público Getty Images via BBC Até aquele momento, ninguém suspeitava de nada, mas devido ao intenso horror causado por este evento, ela sofreu uma execução brutal. Segundo uma das narrativas, ela foi amarrada de pés e mãos e arrastada por um cavalo para fora da cidade, enquanto é apedrejada até a morte por uma multidão enfurecida. Em outras versões, ela não é condenada à morte pela Igreja, mas se arrepende, retira-se para um convento e seu filho se torna bispo. Exemplo Muitos especialistas concordam que a história da Papisa Joana é ficção. Até mesmo contadores de histórias medievais abordavam o assunto se referindo a tudo como um boato. Anthony Bale, professor de Inglês Medieval e Renascentista na Universidade de Cambridge, destacou que há outra maneira de interpretar a história, embora isso não seja necessariamente verdadeiro no sentido histórico estrito. "É suposto ser moralmente verdadeiro. É algo que pode ser útil para nos dizer sobre a moralidade contemporânea", disse ele no mesmo programa da BBC, In Our Time. "A lenda em si pode ser lida como uma parábola sobre a verdade. A história sugere que Joana é capaz de se passar por um homem, de ser educada como um homem, de ensinar como um homem e de ser uma boa Papa, mas a verdade de seu corpo como uma mulher biológica prevaleceria." E isso acontece de uma forma muito pública, humilhante e vergonhosa, diz o acadêmico. Segundo a lenda, seu corpo é exposto publicamente como uma mentira e a verdade aparece. A atriz sueca Liv Ullman interpretou o papel da Papisa Joana em um filme de 1982 Getty Images via BBC Misoginia A lenda se intensifica ao longo dos séculos, com centenas de repetições, elaborações, enfeites e exageros. Algumas versões mantêm o status quo das histórias do século 13, mas escritores posteriores adicionam elementos obscenos e contaminam Joana com uma influência diabólica ou maligna. O poeta italiano Boccaccio (1313–1375) incluiu a história em sua obra De Mulieribus Claris ("Sobre Mulheres Famosas"), uma série de biografias de mulheres históricas ou mitológicas. Sua história tem duas partes, explica Laura Kalas, professora de Literatura Inglesa Medieval na Universidade de Swansea. Uma é positiva, na qual ele elogia a inteligência e a cultura de Juana, e a outra é incrivelmente misógina, na qual ele a descreve como uma espécie de aberração. "Acho que o escritor estava colecionando os detalhes mais picantes de sua história para entreter seus leitores", disse Kalas à BBC. "Refere-se à sua luxúria, ao fato de ela ter um apetite sexual voraz." Boccaccio e seu contemporâneo Petrarca escrevem sobre Joana em termos misóginos Getty Images via BBC A descrição reforça a maneira polarizada como as mulheres eram vistas na Idade Média: a tipologia da casta Virgem Maria versus a tipologia de Eva como prostituta. Boccaccio parece colocar Joana neste último caso, como uma mulher má que trouxe vergonha à Igreja. Mas seu contemporâneo Petrarca vai ainda mais longe, escrevendo dramaticamente sobre a maneira como as ações de Joana perturbam a natureza. "Petrarca descreve como, quando o sexo de Joana é revelado, sangue chove nas ruas da Itália por três dias e três noites. Na França, lagostas gigantes com seis asas e dentes poderosos aparecem milagrosamente", relata o professor. Protestantes contra católicos Diante desses relatos extraordinários, não podemos deixar de pensar que alguns na Igreja acharam que essa era uma história tão ridícula que nem precisavam refutá-la, mas "ninguém realmente levanta qualquer objeção à história", ressalta Katherine Lewis. Isso só começou a acontecer no século 16, quando o cristianismo ocidental se fragmentou, dando lugar à Reforma, e Joana desempenhou um papel interessante nas discussões doutrinárias entre católicos e protestantes. Esta gravura ilustra a visão protestante da lenda de Joana, descrevendo-a como "a prostituta da Babilônia" Getty Images via BBC Como os protestantes negam a autoridade do Papa, eles usam a ideia de que houve uma papa para invalidar o papado, já que a Igreja Católica não a conta na sucessão papal, pois há uma lacuna nesse ponto. Por isso os católicos não poderiam alegar estarem ligados por uma linha ininterrupta a Pedro. Se sua ordenação não for válida, isso põe em questão a ordenação de todos os papas subsequentes e, da mesma forma, de todos os padres e assim por diante. Ironicamente, alguns protestantes que normalmente nunca acreditariam na palavra dos cronistas medievais acabam aceitando o que eles dizem sobre a existência de Joana, diz Lewis. "Então, de repente, os católicos perceberam que agora precisam combater isso e foram os primeiros a desmascarar a lenda." Exclusão das mulheres do clero Reformadores do início do século 14, como Walter Brut e John Wycliffe, argumentaram que a Igreja Católica estava errada em seu tratamento às mulheres. Brut, durante um julgamento por heresia por chamar o Papa de "Anticristo", usou o exemplo de Joana para justificar um papel maior para as mulheres na Igreja, incluindo dar a elas o poder de consagrar a Eucaristia. Uma proposta que é rejeitada pelas autoridades católicas e continua sendo um anátema na Igreja moderna. Além disso, a partir da Idade Média, a lenda da Papisa Joana foi usada como forma de justificar por que as mulheres não deveriam ser ordenadas e por que seu papel na Igreja deveria ser severa ou completamente limitado. A lenda da Papisa Joana deu origem a outro mito: o de examinar os genitais do recém-eleito pontífice para verificar seu sexo Wikipedia commons A professora Laura Kalas destacou que, durante a Idade Média, as mulheres eram consideradas, por sua fisiologia, inferiores aos homens e também seriam mais suscetíveis a certas ideias. "Seus corpos eram considerados mais fluidos e frios, e receptivos a ideias imorais", disse Kalas. "Esses tipos de visões sobre o que é natural começaram a ser usados ​​para justificar códigos morais de comportamento e estruturas eclesiásticas." Como resultado dessa advertência contra as mulheres na Igreja, surgiu uma curiosa lenda sobre uma cadeira especialmente projetada para verificar o sexo de um novo Sumo Pontífice. A lenda conta que, antes de sua proclamação, o Papa ficava sentado em uma cadeira com um buraco por onde um diácono ou clérigo menor apalpava e gritava: "Ele tem testículos!" para verificar se ele era um homem. Entretanto, não há evidências de que tal rito realmente tenha ocorrido. Joana nos tempos modernos O filme alemão Die Päpstin é uma das versões mais recentes que aborda o tema de Joana a partir de uma perspectiva feminista Getty Images via BBC Até os dias hoje, houve inúmeras reconstituições da lenda de Joana. Há romances do século 19, como o do autor grego Emmanuel Rhoides, de 1866, admirado por escritores como Mark Twain e traduzido para o inglês por Lawrence Durrell em 1954 como A Curiosa História da Papisa Joana. A história inspirou uma opereta do dramaturgo dadaísta francês Alfred Jarry, chamada O Fabricante de Mostarda do Papa, e há diversas peças que abordam o assunto ou fazem referência à papisa. A peça Top Girls (1982) da autora britânica Carol Churchill se passa durante um jantar para o qual várias mulheres de diferentes épocas são convidadas, e Juana é uma delas. Ela também está representada no cinema. O primeiro filme foi uma produção britânica com a famosa atriz sueca Liv Ullman no papel principal. Mas a história se concentrou nos relacionamentos românticos de Juana e foi criticada por sua perspectiva machista. Uma produção alemã, Die Päpstin (2009), foi baseada no romance Pope Joan, da autora americana Donna Woolfolk Cross. "É uma representação muito positiva de Joana e tem conotações anticatólicas", comentou a professora Laura Kalas. "O nascimento de seu filho é público, mas não é apresentado de maneira vergonhosa como fizeram os cronistas do século 13." Essas interpretações mais modernas têm um tom feminista, pois abordam o tema das mulheres tentando progredir em um mundo patriarcal, observou Kalas. "Eles reivindicaram Joana como uma espécie de precursora ou modelo de uma sacerdotisa." A professora Kalas se refere a um livro da escritora feminista católica Joan Morris, publicado em 1985, no qual ela defende a ordenação de mulheres e propõe que a Papisa Joana, de fato, existiu.

FONTE: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/04/19/papa-mulher-como-surgiu-a-lenda-da-papisa-joana.ghtml


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